sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

“Eu ainda faço café para dois.”

A mão enrugada rasgou a última folha do calendário. Num gesto lento e pesaroso o velho pendurou ali no mesmo prego em que estava aquela última folha o novo calendário que marcaria os dias do novo ano que estava começando naquele exato momento. O antigo relógio à corda que nunca atrasou sequer um minuto desde o dia em que chegou àquela casa como presente de casamento, há mais de 60 anos, marcava 00.01. Pronto. A sua solitária missão de dizer "olá" aos próximos 365 dias estava cumprida. Já era hora de deitar e descansar os ossos. Mas antes, um último gole no café que ele havia preparado para dois.

Era um homem velho, passava longe dos 80 anos, vivia cansado, mas suas mãos continuavam firmes. Ele não recordava nenhum momento ao longo de sua vida em que percebesse o menor tremor ou fraqueza em suas mãos. Ele era um homem que as mãos jamais tremiam, seja por ódio, por dor ou desespero, medo ou cansaço. As mãos sempre foram firmes iguais as de um cirurgião. Mas naqueles primeiros minutos do novo ano que começava, suas mãos tremiam.

"Eu não gosto de café. Já te disse isso milhares de vezes! Por que você insiste ainda em fazer café para dois?"

O velho recordou a pergunta que fizera há séculos. Ao menos o tempo que se perdia em sua memória fazia sentir isso. Séculos haviam passado desde a pergunta, desde os sorrisos, desde o abraço...desde a partida dela.

"Faço café para dois na esperança de que você se sinta na obrigação de me acompanhar, se não no café, ao menos na contemplação desse momento...o único momento que tenho sua atenção só pra mim...a meia noite"

Cada palavra, cada sílaba, cada letra da resposta imediata que ele recebera ressoava em sua mente todas as meias-noites dos últimos anos... "o único momento que tenho sua atenção só pra mim...a meia noite"...
Ele ainda não sabia. Ela matinha em segredo sua doença que avançava em ritmo acelerado para um final próximo.

Se ao menos ele soubesse. O abraço teria sido mais longo. O beijo mais intenso. Talvez a noite não terminasse e não virasse apenas uma lembrança recorrente por tantas e tantas noites dos longos anos que se seguiram.

No final, depois de resistir brava e dignamente à dor, ela partiu.

O relógio na parede do hospital marcava 00.01, de um amaldiçoado 1° de janeiro.

Ele ficou. E com ele a incumbência de vigiar a chegada de todos os "novos anos" que teriam a audácia de ainda aparecer.

Todas as noites de reveillon, quando o mundo todo celebrava, o velho homem se sentava na mesa da pequena cozinha, com duas xícaras de café a sua frente. _ Pronto querida, você tem toda minha atenção, me conte como foi o seu dia?_

O café para dois esfriava sempre sem respostas, sempre em silêncio.




Nenhum comentário:

Postar um comentário